A jornalista Bruna Scirea
narra os bastidores da cobertura do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, que
vitimou mais de duas centenas de pessoas na madruga deste domingo.
É dos furos que nenhum
jornalista quer dar. É das notícias que nenhum repórter se orgulha em narrar.
São números que têm rosto. E que vão deixar saudade.
Na madrugada deste domingo,
foram pelo menos 233 vidas abreviadas por um incêndio na boate que reunia
centenas de jovens em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. E nessa mesma
madrugada, esta foca, como se chama uma jovem repórter no jargão jornalístico,
cobria, sozinha, o plantão do jornal Zero Hora.
A primeira ligação veio por
volta das 4h. Havia fogo na boate Kiss, no centro da cidade universitária. Em seguida,
chegava a dolorosa contagem: seriam pelo menos 30 mortos. A estimativa, muito
aquém do que iria se confirmar mais tarde, já se firmava como uma das maiores
tragédias vividas pelo povo gaúcho.
Editores informados,
repórteres e fotógrafos acionados, equipamentos separados: iniciávamos a
cobertura mais chocante dos últimos tempos. Daquelas pelas quais desejamos
nunca mais passar. E em poucos minutos o desespero se multiplicava: 50, 70, 90,
centenas de breves vidas tristemente ceifadas.
Na Redação, os telefones
tocavam sem parar, vários ao mesmo tempo. As informações chegavam e, ainda que
atropeladas, queriam dimensionar a tragédia. As vítimas haviam se empilhado
dentro do banheiro, acreditando que aquela era a porta de saída. Do lado de
fora, os que se salvaram usavam marretas tentando abrir buracos de fuga nas
paredes do estabelecimento.
O que se viu e teve de ser
engolido com lágrimas foi uma sequência de erros graves, entre os quais estavam
dois inadmissíveis. O primeiro deles foi a causa: o show pirotécnico da banda,
cujas faíscas associadas à espuma de isolamento acústico, no teto, causaram o
fogo. A segunda é ainda mais lamentável: a casa noturna tinha o plano de
prevenção de acidentes vencido e contava com apenas uma saída de emergência
para um público estimado em mais de mil pessoas.
A notícia acordou o mundo.
Virou manchete e capa de jornal dos veículos mais distantes que se possa
imaginar. Mas de todas as páginas de impressos, sites, telas de TV e timelines
de redes sociais que estampou, a mancha maior é aquela que se reflete na
ausência dos que se foram. Na dor afogada no sentimento vazio dos que ficaram.
Todos já sabiam, mas ninguém
queria e nem podia acreditar. Por isso, celulares vibravam insistentemente
juntos aos corpos ainda estirados no chão. Eram pais, familiares e amigos
imersos em uma remota esperança. Um sentimento que não obteve resposta. Eram
ligações que jamais seriam atendidas. Os tantos pais, que não dormiam enquanto
o filho não voltasse para casa, foram obrigados a acordar com o choque de
reconhecer o corpo de quem tinha ainda tanto a viver.
Em Porto Alegre, as horas
seguintes foram de solidariedade com as famílias. Feridos chegavam a todo o
momento, transportados em ambulâncias e helicópteros. E a todo instante,
medicamentos e profissionais daqui partiam até o centro do Estado.
Depois de mais de oito horas
de cobertura, de adrenalina saindo pelos poros, um tweet vindo de um colega do
Grupo RBS arrancou o que restava de mim. E o desabafo foi inevitável.
“Um bombeiro apanhou um
daqueles celulares que tremiam no chão. O aparelho registrava 104 chamadas. Na
tela: MÃE”.
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